OPINIÃO | Qual Conferência? De qual cidade?
Em 07 de fevereiro deste ano publiquei no jornal Primeira Página a coluna “Quem tem medo da sociedade civil?” Nela, comentava reportagem do próprio Primeira Página em que membros da Prefeitura e da Câmara Municipal afirmavam estar em andamento “estudos” para a alteração do Plano Diretor sem a participação do COMDUSC, que legalmente é parte integrante do sistema de Planejamento do Município.
Já naquela coluna eu alertava que o COMDUSC, criado pela lei 13.918/2006, é definido no artigo 2º., como “órgão consultivo, fiscalizador, normativo, de acompanhamento e assessoramento, integrante do Sistema de Gestão e de Planejamento Urbano no Município de São Carlos”. E que no artigo 4º, inciso I, ficava estabelecido com clareza que compete a esse órgão “monitorar a gestão do Plano Diretor”.
Na mesma coluna levantava que esse medo da participação cidadã já havia levado a alterar a lei de criação do Conselho no sentido de vetar a possibilidade de ser presidida por um representante da sociedade civil.
De lá para cá as práticas restritivas (reuniões convocadas em cima da hora, informações incompletas, etc.) foram a norma, mas nada havia chegado ao ponto da “convocação” escandalosa de uma suposta Conferência da Cidade, marcada às pressas e em horário que literalmente impede qualquer participação da cidadania.
Se o leitor pensa que pode haver exagero – ou puro oposicionismo – de minha parte, que tal uma Conferência da Cidade, “convocada” por email de uma entidade profissional e por um órgão da imprensa digital no dia 22, sexta-feira passada, para ser realizada nos dias 27, 28 e 29, no plenário da Câmara Municipal, das 9 da manhã até as 16 ou 17 horas? E sem que o COMDUSC tenha aprovado previamente a proposta.
Alguém pode considerar isso uma proposta de boa fé? É essa a noção de participação e de democracia que governa nossa cidade e seu futuro?
Naquele mesma matéria de fevereiro, o secretário Netto Donato indicava que haveria a necessidade “de participação popular e técnica” para embasar as propostas. E então secretário, qual é a ideia que o governo de São Carlos tem da “participação popular” possível num evento nesse horário e sem antecedência de convocação?
Nem ao menos houve a decência de lembrar que o nosso município já realizou duas Conferências da Cidade verdadeiras.
A primeira foi realizada em 2002 e teve por objetivo realizar um diagnóstico da situação do município, com a participação de várias Secretarias da Prefeitura e entidades da sociedade civil, como as Universidades, as Embrapas e as entidades profissionais de arquitetos, engenheiros, etc.
A segunda foi realizada em agosto de 2003 e já tinha por objetivo a elaboração do futuro Plano Diretor. Foi nela que se criaram a Câmara Técnica e o Conselho do Plano Diretor.
Para a elaboração deste, apresentado à Câmara Municipal ao final de 2004, foram realizadas no ano seguinte dezenas de audiências públicas, de caráter regional, em distintos bairros e de caráter técnico, com distintos setores técnicos da sociedade civil. E sempre à noite, quando cidadãos e cidadãs podem exercer seu legítimo direito de participar das decisões que afetam a vida da sua cidade.
A Prefeitura, nesse período, além de intensa divulgação na mídia, mandava convite bastante antecipado para Associações de Bairro, ONGs, ACISC, AEASC, universidades, MP e Câmara Municipal.
Quando falo acima do “legítimo direito” de participação não sou em quem o atribui, mas o próprio Estatuto da Cidade, como é conhecida a Lei Federal 10.257/2001, que regulamenta a execução da política urbana no país.
No seu capítulo III, acerca do Plano Diretor, fica estabelecido com clareza (artigo 40, parágrafo 4, incisos I, II e III):
“No processo de elaboração do plano diretor e na fiscalização de sua implementação, os Poderes Legislativo e Executivo municipais garantirão:
I – a promoção de audiências públicas e debates com a participação da população e de associações representativas dos vários segmentos da comunidade;
II – a publicidade quanto aos documentos e informações produzidos;
III – o acesso de qualquer interessado aos documentos e informações produzidos.”
Nada nem remotamente parecido com isso, que é obrigação legal do Poder Executivo, está garantido na convocação quase em surdina de uma pseudo conferência a ser realizada em horário comercial.
Assim, fica muito difícil evitar a impressão de que a tal Conferência, que ignora o histórico do município e as prescrições da legislação urbanística federal, seja mais do que uma cortina de fumaça destinada a legitimar a contratação de uma fundação externa para realizar a proposta de “atualização” do Plano Diretor, evitando a participação da cidadania e do conhecimento técnico instalado na cidade, em suas universidades e centros de pesquisa, em seus órgãos de representação da sociedade civil.
Afinal, não foi exatamente o que aconteceu com o tal Plano de Mobilidade Urbana?
Carlos Ferreira Martins, Professor Titular do Instituto de Arquitetura e Urbanismo da USP São Carlos, presidiu o COMDUSC por duas vezes e participou, como Secretario de Governo, da convocação e organização das primeiras Conferências da Cidade.